Ary dos Santos
José Carlos Ary dos Santos era filho do médico Carlos Ary dos Santos e de Maria Bárbara de Miranda e Castro Pereira da Silva. Nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, a 07 de Dezembro de 1936 e faleceu a 18 de Janeiro de 1984 na mesma cidade. Ficou conhecido no meio social e literário por Ary dos Santos.
Frequentou o Colégio de São João de Brito, em Lisboa, tendo-se encontrado entre os alunos do seu curso fundador.
A sua obra literária inicia-se no mesmo ano em que a sua mãe morre, aos 14 anos, quando vê publicados, através de familiares, alguns dos seus poemas, considerados maus pelo autor. No entanto, Ary dos Santos revelaria verdadeiramente as suas qualidades poéticas em 1954, com dezasseis anos de idade. É nessa altura que vê os seus poemas serem seleccionados para a Antologia do Prémio Almeida Garrett.
É então que Ary dos Santos abandona a casa da família, exercendo as mais variadas actividades para seu sustento económico, que passariam desde a venda de máquinas para pastilhas até à publicidade. Contudo, paralelamente, o poeta não cessa jamais de escrever e em 1963 dar-se-ia a sua estreia efectiva com a publicação do livro de poemas A Liturgia do Sangue (1963).
Em 1969 inicia-se na actividade política ao filiar-se no PCP, participando de forma activa nas sessões de poesia do então intitulado "canto livre perseguio".
Entretanto, concorre, sob pseudónimo como exigia o regulamento, ao Festival RTP da Canção com os poemas Desfolhada Portuguesa (1969), Menina do Alto da Serra (1971) e Tourada (1973), obtendo os primeiros prémios. É aliás através deste campo – o da música - que o poeta se torna conhecido entre o grande público.
Autor de mais de seiscentos poemas para canções, Ary dos Santos fez no meio muitos amigos. Gravou, ele próprio, textos ou poemas de e com muitos outros autores e intérpretes e ainda um duplo álbum contendo O Sermão de Santo António aos Peixes do Padre António Vieira.
À data da sua morte tinha em preparação um livro de poemas intitulado As Palavras das Cantigas, onde era seu propósito reunir os melhores poemas dos últimos quinze anos (publicado postumamente), e um outro intitulado Estrada da Luz - Rua da Saudade, que pretendia fosse uma autobiografia romanceada.
O poeta morre a 18 de Janeiro de 1984. O seu nome foi dado a um largo do Bairro de Alfama, descerrando-se uma lápide evocativa na casa da Rua da Saudade, onde viveu praticamente toda a sua vida.
Ainda em 1984, foi lançada a obra VIII Sonetos de Ary dos Santos, com um estudo sobre o autor de Manuel Gusmão e planeamento gráfico de Rogério Ribeiro, no decorrer de uma sessão na Sociedade Portuguesa de Autores, da qual o autor era membro.
Em 1988, Fernando Tordo editou o disco "O Menino Ary dos Santos" com os poemas escritos por Ary dos Santos na sua infância.
Bibliografia
1953 - Asas
1963 - A Liturgia do Sangue
1964 - Tempo da Lenda das Amendoeiras
1965 - Adereços, Endereços
1968 - Insofrimento In Sofrimento
1970 - Fotos-grafias
1970 - Ary por Si Próprio
1973 - Resumo
1974 - Poesia Política
1975 - Lllanto para Alfonso Sastre y Todos
1975 - As Portas que Abril Abriu
1977 - Bandeira Comunista
1979 - Ary por Ary
1979 - O Sangue das Palavras
1980 - Ary 80
1983 - Vinte Anos de Poesia
1984 - As Palavras das Cantigas
1984 - Estrada da Luz
1984 - Rua da Saudade
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Não posso deixar de aqui deixar algumas, de entre muitas, poesias que me marcaram desde sempre.
Os putos
Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.
Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.
Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.
As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo
Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.
A cidade é um chão de palavras pisadas
A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.
A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.
A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.
Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
--- é tão vulgar que nos cansa ---
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
--- a morte é branda e letal ---
mas que dizer da memória
de uma bomba de napal?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
--- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
--- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Meu amor, meu amor
Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.
Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.
Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.
Cavalo à solta
Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.
Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.
Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.
Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.
Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.
Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.
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